Se toda vontade, desejo, anseio, busca e sonho de uma pessoa fossem colocados em garrafas, como elas se pareceriam? Qual seria o formato, tamanho, peso? Qual nome você daria a sua garrafa? Qual seria a cor?
Eu vi essas garrafas algumas vezes, recordo do formato, peso e até cheiro. Eu as vi derramar uma lágrima que escorreu por seu corpo de forma lenta e ritmada como se estivesse escutando uma música melancólica e, perto de chegar ao fim da sua trilha e próxima da mesa onde a dona dos olhos inexistente estava repousada, a lágrima se agitou, correu mais rápido, como uma ânsia de acabar sua caminhada. Era como se estivesse escutando os pensamentos inquietos de seu dono ou até mesmo os pensamentos de outras pessoas ao seu redor. A garrafa suava incontrolavelmente pela pressão que armazenava dentro de si. Mas ao mesmo tempo ela se refrescava com a mistura de suor e lágrimas que salgava seu corpo e a preparava para toda aflição do desejo que seria colocada nela.
Seu corpo carregava marcas, nomes, deformidades que foram feitas sem a sua permissão, mas nada disso tirava sua característica mais preciosa: seu conteúdo. De que valia uma exímia aparência sem a garantia de num conteúdo que poderia inebriar qualquer um, afinal, não são todas as garrafas que carregam em si tamanha importância. Esse recipiente entendia isso. Ele sabia que não havia nada mais valioso do que seu interior. Seu segredo. Ah, sim! A garrafa tinha segredos, inúmeros. Frases inconfessas e que aquecia seu interior como um peito ensopado e embriagado pelo melhor e mais doce vinho. E eu via isso. Eu entendia sua capacidade de cortar o mais profundo dos laços e desatar o mais resistente dos nós com um simples sussurrar das suas confidências.
Em uma das vezes que eu conversei com um desses frascos ele me confidenciou um dos seus segredos. Ele tinha um anseio incontrolável. O fôlego. Ele gostava de sentir e ter para si o fôlego daqueles que colocavam seus mais profundos desejos lá. Se permitia ser tocado, mas não apenas por interesse, ele também gostava intimamente de ter em si o calor daqueles que o sentiam. Gostava do toque suave dos lábios, ou da aspereza do desespero. O tal frasco sabia seu poder e ele usava às vezes. Quando eu conversei com ele, eu fui permitido ver o mesmo tirar para si toda a alegria de uma pobre criatura, só restou lágrimas. Eu estava impotente naquela situação, aquela dor era antiga e estava escondida entre tantas risadas. Eu fiquei com raiva dele e decidi dar-lhe uma lição de moral. Mal sabia eu que aquele frasco era velho, sabia demais. Eu me tornei a pobre criatura, mas foi diferente, ele me deixou continuar conversando com ele, secou minhas lágrimas que me fizera derramar e me contou que seu maior segredo não era apenas o conteúdo que ele armazenava durante tanto tempo e carregava em si. Seu maior segredo era ficar vazio. Quando mais vazio ele ficasse, mais ele recebia. Eu achei estranho e não entendi. No fim, concluí que aquela garrafa tinha confidências mais profundas do que eu poderia entender, então eu disse a ela: "Se sua busca é ficar vazia, vá em frente agora mesmo e se derrame, jogue ao chão sob a mesa tudo aquilo que você tem agora e se torne um recipiente vazio". E ela teve o prazer de me responder: "Criança, você não entendeu nada, se tornar vazio não é desperdiçar tudo aquilo que há dentro de si, mas, sim, desenroscar a tampa". Eu apenas a olhei e olhei. Ficamos durante muito tempo ali, sentados, pensando. Concluí que talvez depois de tanto tempo ela tivesse perdido parte da sanidade, afinal, o que seria então se tornar vazio senão tirar de si aquilo que se há?!
Fiquei intrigado com a resposta durante muito tempo e decidi fazer a uma pessoa as mesmas perguntas do início. Talvez fosse mais fácil entender gente ao invés de garrafas. Porém, tive o infortúnio da resposta: "Não há tais garrafas. Se houvesse, seriam inúteis. De que adiantar colocar tudo isso em algo tão estúpido?". Após essa resposta eu sentei em um banquinho de madeira que estava na praça onde eu encontrei esse tal alguém e pensei por muito tempo. Não fazia sentido, eu mesmo vi essas garrafas. Ele mentiu? Será que ele nunca viu uma delas? Estranho. Decidi dar uma segunda chance e perguntei a outro:"Se houvesse tal garrafa, ela valeria bastante!". Continuei. "Eu quebraria todas as de quem eu não gostasse". "A minha seria verde". "Louco!". "Seria tão grande quanto um arranha céu". Ao fim da busca por respostas convincentes eu já estava cansado. Fui embora sem nenhuma resposta que me agradasse e abandonei o assunto.
Anos após o início de toda essa busca e interesse por garrafas eu me deparei com uma... garrafa. Estranhamente ela me era familiar, engraçada. Eu já tinha ficado velho, crescido e cansado. Ela estava semelhante de quando eu a havia visto a primeira vez, porém mudada. Perguntei o que tinha acontecido. "A vida", ela me respondeu. Eu ri, pois como uma garrafa poderia saber o que era vida?! Ela riu de volta com um ar acolhedor e me disse:
"A sua, não a minha!".
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